O Silenciamento da Alma em Nome do “Lugar de Fala”
- Ana Cristina Lamas

- 1 de mai.
- 2 min de leitura
Vivemos uma era em que o diálogo vem sendo substituído por palavras de ordem. Uma delas — “lugar de fala” — nasceu como um instrumento ético, destinado a visibilizar vozes historicamente excluídas. No entanto, o que deveria ser abertura e escuta, tem se tornado, muitas vezes, uma trincheira onde a reflexão morre sufocada.

Quando se diz que “só pode falar quem viveu”, corre-se o risco de invalidar a sabedoria construída não apenas pela experiência direta, mas também pela escuta empática, pelo estudo sério, pelo olhar clínico e pela capacidade simbólica de compreender o humano em suas múltiplas expressões. Como se pode observar: não é preciso se ferir para compreender o perigo — é preciso escutar com o coração e com os olhos bem abertos. No limite, isso empobrece o diálogo e cria bolhas que apenas reforçam convicções sem abrir espaço para o questionamento ou a elaboração — o oposto do que uma consciência amadurecida busca.
Na clínica e na vida, aprendemos que o saber pode vir da vivência, sim, mas também da escuta profunda, da observação sensível, do estudo sério e da empatia ativa. Há quem tenha atravessado desertos interiores sem que ninguém veja suas pegadas. E há quem saiba intuir a dor do outro sem ter vivido o mesmo cenário. Isso não é apropriação, é comunhão.
Na perspectiva junguiana, esse movimento de fechamento pode ser lido como uma inflação arquetípica da persona identitária, onde se protege um território psíquico em vez de ampliar o campo da consciência. É como se o ego, ferido, dissesse: “Não me diga nada, só quem sangra pode falar.” E, com isso, impede-se o nascimento de uma terceira via — o símbolo — que poderia abrir caminhos de transformação.
Jung nos mostrou que a consciência se expande quando se arrisca a olhar o outro sem defesas, sem projeções, sem as verdades prontas que o coletivo impõe. Quando alguém é calado por “não ter lugar de fala”, mesmo tendo um olhar genuíno e sensível, é a alma coletiva que se empobrece. A escuta vira um tribunal, não um campo fértil.
Observar com atenção, refletir com coragem, nomear com humildade — eis também formas legítimas de conhecer. Dizer que não se pode falar sobre algo por não tê-lo vivido diretamente é como exigir que todos se queimem para saber que o fogo machuca. O conhecimento não nasce apenas da dor pessoal, mas também da capacidade simbólica de compreender o humano em seus paradoxos.
Precisamos resgatar a confiança na escuta que inclui e transcende. A que acolhe não só quem fala de si, mas também quem se dedica a ver o mundo com olhos despertos — como se a alma, mesmo em silêncio, sussurrasse o que precisa ser dito.
Com carinho,
Ana Cristina.
Psicóloga junguiana






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